O rasgamento e a reconstrução de Alfama

No início do século XX, discussões em torno da saúde e das condições sanitárias em Lisboa propunham o rasgamento e a reconstrução de Alfama. 

Em 1903 o médico Miguel Bombarda descrevia o bairro de Alfama do seguinte modo:

vielas tortuosas e lôbregas, moradias soturnas e infectas, aquela acumulação habitacional com becos de 50 cm de largo e prédios em que se vive em casa dos vizinhos, aquele enxame de gente, aquele amontoado de casas […] Coisas imundas, coisas asquerosas, coisas desafiando os mais negros voos da imaginação […] Não são só os pátios onde formiga uma população esfarrapada e desconhecendo as noções mais rudimentares do asseio do corpo ou da casa […] São ainda as cités operárias que se fizeram com o ignóbil aprovei­tamento dos velhos palácios desabitados […] tudo foi aproveitado para cubículos infectos […] E vivem ali centenas de criaturas humanas na mútua infecção, no mais atroz imundismo, e quantas vezes no vício, na descompostura e na desordem.

Miguel Bombarda, “O bairro de Alfama”, A Medicina Contemporanea, n° 9 , 1903, p. 68.

Para vários médicos portugueses dos finais do século XIX e inícios do século XX, as condições do Bairro de Alfama e de outros semelhantes na cidade de Lisboa eram miseráveis ao ponto de considerarem que a única solução seria o “rasgamento” (nas palavras do médico António de Azevedo) e a reconstrução do bairro. Estas preocupações em torno das condições sanitárias das cidades portuguesas são plasmadas nas revistas especializadas e dirigem-se a outros profissionais da saúde.  

A cidade sob o olhar do médico

Segundo Rita Garnel, o pensamento médico do século XIX e de inícios do século XX está intimamente ligado com a ideia de interdependência entre o homem e o seu meio. Actuar sobre a doença implicava também actuar sobre a natureza e em última análise actuar sobre o meio social. Nesse sentido, os médicos, tendo desenvolvido capacidades e meios de observação, de análise e medição sobre o homem, arrogam-se de serem também capazes de actuar sobre a sociedade. 

A classe médica foi uma daquelas que conseguiu impor a sua autoridade e importância ao longo do século XIX, ganhando poder através da regulamentação profissional. Em Portugal, o aumento da autoridade da classe médica derivou dos esforços encetados na reforma do ensino médico, mas também na sua construção no interior do Estado moderno.

A autoridade médica reflecte-se, em primeiro lugar, na presença destes profissionais no próprio governo. Embora com alguma presença durante o período anterior, é durante a Primeira República que o número de médicos entre os deputados atinge o número 50, um fenómeno que se já tinha verificado com os engenheiros durante o período da Regeneração

Entre a reforma do ensino médico e as tentativas de introduzir na legislação protecção em torno da profissão e do exercício legal da medicina, o médico durante a Primeira República, a par de outros peritos e especialistas, torna-se um observador importante dos problemas da cidade e, pelo menos em teoria, com alguma capacidade para tornar a sua opinião visível no palco governativo. 

Não é, por isso, surpreendente que a posição dos médicos perante os problemas da população e os problemas da cidade se façam sentir na imprensa especializada e também nos jornais generalistas. Em determinados momentos, encontra-se patente a clara afirmação que apenas eles, os médicos, têm a autoridade e a expertise necessária para solucionar os diferentes problemas da cidade. É nesse sentido que não é invulgar a publicação de artigos em revistas especializadas que, aparentemente fogem à temática da área da medicina e enveredam pelo urbanismo e pela questão da habitação barata para a população pobre.

O problema da insalubridade das casas das populações mais desfavorecidas de Lisboa será uma questão que é transversal a todo o período da Primeira República e irá, obviamente transvasar para o período seguinte e interessa a um vasto grupo de profissionais, sejam eles médicos, higienistas ou engenheiros. 

Rasgamento e a reconstrução de Alfama

As preocupações em torno do saneamento e higiene da cidade assentam também na consciência que não existem soluções fáceis para a cidade e para as condições do país. António de Azevedo no artigo “O Saneamento do Bairro d’Alfama” publicado na Medicina Contemporânea em 1914, e a propósito da proposta de “rasgamento e reconstrução” do bairro de Alfama, recorda que embora tenham existido planos para sanear o bairro que constituiu “o pesadelo dos higienistas” desde a década de 50 do século XIX, nada foi feito para alterar verdadeiramente a situação.

O rasgamento e a Reconstrução de Alfama
Beco da Bicha, Alfama

Não se trata apenas da demolição de antigas casas e abrir ruas largas, trata-se sim de tomar consciência que a situação de Alfama é demasiado específica: um bairro no centro da cidade, com uma população pobre, numerosa – o autor fala em 1 400 famílias concentradas em apenas duas freguesias, S. Miguel e Santo Estêvão – num espaço limitado que não permite novas edificações. A eliminação do bairro iria obrigar à deslocação da população para zonas limítrofes, criando novos aglomerados populacionais e novos problemas de insalubridade, contribuindo também para o agravamento da crise habitacional e possivelmente provocando um aumento considerável das rendas na cidade. 

A proposta de “rasgamento de Alfama” faz eco das vária discussões da Câmara dos Deputados na qual Alfama acolhe os epítetos menos favoráveis:

“Se um estrangeiro (…) der um passeio pelo bairro de Alfama, ficará com uma triste impressão das baiucas que ali vê, que são mais próprias para animais inferiores do que para homens.”

“Ali a imoralidade campeia, devido à promiscuidade dos sexos, e a tuberculose atinge uma percentagem elevadíssima como no Bairro de Alfama”

Febre tifóide em Lisboa, 1912

Para além da tuberculose, a varíola, a cólera e a febre tifóide são as doenças que mais suscitam mais cuidados, existindo uma acentuada preocupação em torno das condições de higiene da cidade, nos seus potenciais catalisadores de doenças e contágios. 

A febre tifóide, por exemplo, embora não sendo transmissível de pessoa para pessoa, reflecte antes de mais problemas com o saneamento público e com a qualidade da água. Deste modo, os surtos que aconteceram durante a primeira República revelam-nos, não apenas o estado da saúde na capital, mas também, de forma relevante, os problemas que a cidade enfrentou em termos de crescimento da sua população, as dificuldades em fazer abastecer a cidade de água potável e modo como as infra-estruturas se mostraram insuficientes.

Logo nas primeiras semanas do ano 1912, começaram a surgir notícias entre a imprensa especializada do aumento de casos de febre tifóide em Lisboa. Apesar das suspeitas levantadas sobre a contaminação no abastecimento da água, a Companhia das águas indicava, então, que as análises realizadas no Alviela e Águas Livres não revelaram a presença do bacilo da febre tifóide. 

No entanto, no mês seguinte, com o aumento do número de casos a atingir as centenas, casos esses que estão espalhados um pouco por toda a cidade, a opinião dos médicos vai-se centrar na convicção que, em tais circunstâncias, a epidemia só pode ter causa na contaminação das águas. O facto do abastecimento da água a Lisboa ter várias proveniências dificulta a imediata identificação do problema. 

O abastecimento de água à cidade foi, desde cedo, uma preocupação constante, ligada com a própria topografia da cidade. Um dos factores condicionantes à fixação de população desde a Pré-história foi a existência de água potável na zona oriental de Lisboa. Mas com a expansão para ocidente e a inexistência de poços de água, o abastecimento de água rapidamente se tornou um problema constante, particularmente durante os meses de verão. 

No século XVIII a construção do aqueduto das águas livres irá resolver, em parte os problemas, mas aquando da finalização do projecto, tornou-se evidente que o problema estava longe de ser resolvido. A captação do Alviela a partir de 1880 irá ser fundamental para abastecer a cidade de água, mas ao longo dos anos seguintes problemas inerentes à qualidade, manutenção da rede e oscilações nos caudais vão contribuir para o surto de algumas doenças, nomeadamente a febre tifóide, embora a uma escala consideravelmente reduzida se comparada com décadas anteriores. A redução da mortalidade devido à febre tifóide na cidade a partir da década de 1880 resulta em parte, não só da introdução das águas do Alviela, mas também do encerramento de vários poços.

Fonte das ratas
Fonte das ratas, Alfama

A criação de um laboratório municipal em 1881 irá permitir a realização de análises químicas à qualidade da água que chega a Lisboa. No entanto, para a realização de análises bacteriológicas, o município tinha de recorrer ao Instituto Bacteriológico que respondia a vários pedidos externos. As análises químicas e bacteriológicas à água que abastecia Lisboa eram assim realizadas apenas em quatro locais de recolha, ficando as restantes ao abrigo de análises simplificadas.

A epidemia de febre tifóide de 1912 em Lisboa, do qual foram registados 2 615 casos, dos quais se registaram 254 mortes, ocorreu num ano marcado por chuvas torrenciais e persistentes, sendo o canal do Alviela bastante danificado e impedindo o seu normal funcionamento durante quase três meses. No entanto, segundo um relatório apresentado no ano seguinte à revista Medicina Contemporânea, o foco inicial deu-se em Alfama, no reservatório da Praia.

Estação Elevatória da Praia
Estação Elevatória da Praia

Este reservatório, com quatro respiradouros que se elevava a menos de um metro da superfície, estava bastante próximo de umas latrinas mal conservadas e que tinham ligação com o canal de  ligação entre os esgotos da cidade e o rio Tejo. As chuvas intensas que se fizeram sentir naquele ano combinadas com as marés vivas, fizeram com que o reservatório da Praia recebesse as águas não só do rio, mas também aquelas dos esgotos.

A febre tifóide irá surgir nos anos seguintes, embora não com a intensidade de 1912, tendo como causa frequente a contaminação das águas que abastecem a cidade. A instabilidade política da Primeira República, aliada à situação económica do país e aos problemas estruturais e administrativos, fazem com que a solução para o problema seja arrastada por vários anos. 

A partir de 1918, a preocupação médica com as doenças concentra-se na gripe, doença que afecta toda a Europa e que não está directamente relacionada com a cidade e as suas estruturas físicas e sociais. 


Referências:

GARNEL, Rita, O poder intelectual dos médicos, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007

PATO, João Howell, História das políticas públicas de abastecimento e saneamento de águas em Portugal, Entidade Reguladora dos Serviços de águas e resíduos (ERSAR), Lisboa, 2011

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Cidade e a Doença

A Cidade e a Doença

4 Agosto 2024

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