A invenção de Belém, ocidental praia lusitana

A relação entre Belém e Descobrimentos – A invenção de Belém – tem de ser lida e compreendida dentro de um contexto de construção e “invenção” historiográfica, tão em voga em momentos de exaltações nacionais e patrióticas.

No dia de Reis nascia o real mosteiro

A tradição diz que foi no dia de Reis ou da Epifânia, a 6 de Janeiro de 1501 ou 1502, que se deu início à construção do mosteiro dedicado a Santa Maria de Belém. E no dia 6 convidamos todos a visitar Belém na nossa nova visita guiada.

Os Reis Magos – portal oeste da Igreja dos Jerónimos

O rei D. Manuel I mandou levantar, junto à praia do Restelo e onde existia uma velha ermida, o real edifício que seria mais tarde destinado a sua sepultura. A ordem de São Jerónimo seria a corporação religiosa que iria ocupar o mosteiro até à sua extinção em 1834. Para além da importância em termos arquitectónicos e decorativos, o mosteiro passaria a marcar a centralidade do sítio então designado como Belém.

A invenção de Belém

Quando pensamos nos “Descobrimentos” em Lisboa, logo a nossa memória nos remete para os edifícios-chave que enquadram a época: Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém (século XVI) e com o Padrão dos Descobrimentos e Rosa-dos-Ventos (século XX) a cumprirem o seu papel didáctico e ilustrativo da época de ouro da história de Portugal.

As figuras de Vasco da Gama e Luís de Camões estão irremediavelmente ligadas a Belém – daqui partiram em corpo e regressariam para a eternidade no século XIX. De Camões, ficamos com a imagem do Velho do Restelo clamando contra a glória e vã cobiça que levavam do reino homens para a conquista quando o inimigo já estaria à porta.

Canto IV

Partimo-nos assi do santo templo

Que nas praias do mar está assentado,

Que o nome tem da terra, pera exemplo,

Donde Deus foi em carne ao mundo dado.

Mas um velho, de aspeito venerando,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

Cum saber só de experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:

«Ó glória de mandar, ó vã cobiça,

Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

Mísera sorte! Estranha condição!»

Luís de Camões, Os Lusíadas, 1572

Almeida Garrett escreve durante o seu exílio em Paris (1825) o poema Camões. Na poesia, os Lusíadas foram o modelo para uma nova epopeia escrita, dando voz a um Camões ressuscitado e romantizado, um herói laico, modelo a seguir de resistência. Uma primeira exaltação de nacionalidade e patriotismo que se apropriou de um poeta esquecido desde o século XVII.

Curiosamente no mesmo poema, ao referir o Mosteiro, Garrett utiliza a expressão “manuelino”, para assim caracterizar o estilo florido da igreja. Este termo passará a adjectivar um estilo nacional de grande carga decorativa e simbólica, ligado à gesta dos descobrimentos, uma apropriação que ao longo dos anos acabaria por dificultar uma leitura mais consentânea com o espírito do tempo e da sua intenção. E que certamente não foi o da “comemoração do império” nem dos “descobrimentos” como um acto colectivo dos portugueses. Existe uma arte manuelina mas não um estilo manuelino.

Uma afirmação que importa repetir e insistir e que infelizmente continua a ser apregoada sem qualquer sustentação histórica: o Mosteiro dos Jerónimos não foi fundado em acção de graças ou de agradecimento pela descoberta do caminho marítimo para a Índia. Urge apagar este erro recorrente em guias, livros e sites turísticos: em 1496, foi fundado a 23 de Junho, pela bula Eximiae devotionis de Alexandre VI, que, a pedido do rei D. Manuel I, autorizava a transformação do eremitério de Santa Maria de Belém, pertencente à Ordem de Cristo, em mosteiro da Ordem de São Jerónimo, ou seja, antes do início da viagem de Gama.

De 1500 a 1885 – do sítio a concelho

O sítio de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos passarão a ser o centro polarizador da parte mais ocidental do território de Lisboa. Lugar de acostagem, de aguada, cargas e descargas, em que o lado comercial se ligará de forma natural à presença da igreja que chama a si crentes e viajantes curiosos pela grande obra real.

Chegou o navio à ribeira de Lisboa e, na de Belém, desembarcaram, porque quis Auristela, enamorada e devota da fama daquele santo mosteiro, começar por visitá-lo e ali adorar o verdadeiro Deus, livre e genuinamente, sem as rebuscadas cerimónias da sua terra.

Miguel de Cervantes, Los trabajos de Persiles y Sigismunda [1617], Edições Colibri, 2017, pág. 28
A invenção de Belém
Vista do Mosteiro e praia de Belém, 1657 – pintor Filipe Lobo (in MNAA)

A praia, agora denominada de Belém (o Restelo passará ser o topónimo da zona de encosta paralela à colina da Ajuda) foi local da partida de Vasco da Gama. O empório português alargava-se para Oriente e Francisco Xavier, que também partiu de Belém, levaria o Evangelho aos gentios das Índias. Cumpria-se assim a viagem em busca de especiarias e cristãos.

No século XVIII tornou-se local de inúmeros palácios e casas senhoriais, o sítio tornava-se afamado pela presença regular da família real, a maior proprietária da zona entre Belém e Ajuda. Em 1712 era assim descrito o sítio de Belém:

Adiante da Junqueira fica logo o lugar de Belém, taõ salutífero & aprazivel, q dos naturaes & estrangeyros he apetecido para habitação; & os que por falta de comodidade o naõ podem habitar, estaõ em continuo concurso frequentando aquelle sitio. Nelle tem casas, quintas nobres, Fidalgos das primeyras qualidades do Reyno; & se o terreno permittira mais Palacios, ou edifícios, viera a ser a Cidade continuada até aquelle sitio.

António Carvalho Costa, Corografia Portuguesa, tomo 3º. Lx, 1712, pág. 652

Belém foi testemunha de dois momentos fatídicos que ainda hoje marcam o sítio:

  • 1759, o cadafalso para castigo dos Távoras levantado perto do cais de Belém e a memória no Largo do Chão Salgado;
  • 1807, a partida da família real para o Brasil e a transferência da capital do reino para o Rio de Janeiro. E assim nasceu o Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves com D. João, agora o sexto de seu nome.

Em plena era fontista e de reforma administrativa do território de Lisboa, foi criado o concelho de Belém, 1859, e extinto em 1885, ficando para a história o 1º presidente da câmara municipal de Belém, Alexandre Herculano. Durante este período até ao início das demolições em 1938, o concelho de Belém foi um dos mais fecundos em comércio, indústria, teatros, mercado, feiras e até transportes!

Foi ainda palco das comemorações do Tricentenário da morte de Camões, com a trasladação das ossadas de Luís de Camões e Vasco da Gama, a 10 de Junho de 1880.

Revista Occidente, 15 de Junho de 1880
Teatro Luís de Camões, 1880 – LU.CA, Caçada da Ajuda

O fim de Belém – 1940

Em 2020 e 2021 teve lugar no Padrão dos Descobrimentos a exposição BELÉM-demolir para encenar. Comissariada por Pedro Rito Nobre, a exposição deu a conhecer os antecedentes e processos que envolveram a construção da Exposição do Mundo Português (EMP, 1940). As imagens ainda hoje impressionam: da demolição de edifícios de habitação com algum valor arquitectónico, à transformação radical da margem ribeirinha entre a Central Tejo e Torre de Belém. A EMP marcaria visualmente Belém, criando-se a Praça do Império como eixo congregador de todo o espaço expositivo e marcando, até aos dias de hoje, a centralidade de Belém. Inventou-se uma nova Belém, mais monumental do que alguma vez teria sido., artificializada para servir um propósito ideológico. Terminada a exposição, seguir-se-iam anos de hesitações e inércia. E este é o mote para a nova exposição no Padrão dos Descobrimentos que nos dá a conhecer o “pós-EMP”.

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Invenção de Belém

A Invenção de Belém

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