Desvendamos os mitos e os factos em torno dos crimes de Diogo Alves. Provavelmente o criminoso mais conhecido de Lisboa: o assassino do Aqueduto das Águas Livres, um dos últimos condenados à morte em Portugal, um homem tão terrível que a sua cabeça foi preservada num frasco.
O que realmente conhecemos deste homem?
Não é fácil, passados 182 anos, tentar encontrar a verdadeira história de Diogo Alves. Logo após ter sido preso e imediatamente após a sua condenação e morte, foram vários os folhetins que procuraram dar a conhecer o “facínora” e os seus terríveis crimes. Graça Pacheco, que estudou as narrativas em torno de criminosos portugueses no século XIX para a sua tese de doutoramento, aponta para a popularidade destes relatos entre a população.
Logo no mesmo ano da morte no cadafalso, em 1841, são publicados duas obras sobre Diogo Alves:
- Vida e Morte de Diogo Alves, de Francisco Martins Basto
- O Supplicio de Diogo Alves: Canto em Verso Heroico por Antonio Manoel Terras. Canto Funebre, Offerecido aos Habitantes da Capital…. por António Manuel Terras.
Mais tarde, em 1897, Diogo Alves foi alvo de um longo artigo na revista Galeria de Criminosos célebres em Portugal: História da Criminologia Contemporânea (1896-1908), assinado por Alberto Câmara e Santos Júnior (Santonillo). Nele dá-se conta da diversidade de obras publicadas em torno desta figura:
“Muito tem sido, o que a respeito de Diogo Alves, se tem escrito até à actualidade. Desde a publicação de folhas avulsas e baratas com venda anunciada pelas ruas e praças em pregões soltos por vendedores avinhados, até ao romance sensacional e emocionante lançado no mercado por autores e editores da maxima respeitabilidade, está por todo o país espalhada a história de Diogo Alves”.
Galeria de Criminosos célebres em Portugal, 1897, p. 123
A obra Galeria de Criminosos célebres em Portugal pretendia afirmar-se como um veículo de comunicação da investigação criminal moderna. O conjunto engloba 7 volumes num total de 1451 páginas e para a qual contribuíram diversos autores de diversas profissões, incluíndo jornalistas, polícias, médicos e antropólogos. De acordo com a já citada Graça Pacheco, os artigos publicados oscilam entre os textos “médico-antropológicos, a jurisprudência e a ficção realista e naturalista”. Importa dizer que estes autores escreveram cerca de 50 anos após os acontecimentos, muitas vezes não indicando quais fontes que foram consultadas.
Os crimes de Diogo Alves e a sua quadrilha
Diogo Alves nasceu na Galiza, numa localidade próxima de Lugo. Como tantos galegos neste período, veio para Portugal à procura de trabalho e de uma vida melhor. Diogo Alves tinha apenas 13 anos e, segundo Alberto Câmara e Santos Júnior (Santonillo), trabalhou honestamente como moço de recados e boleeiro em Lisboa.
São também estes autores que nos indicam que Diogo Alves começou a frequentar uma taberna para os lados de Benfica e que a sua passagem por ali, principalmente o relacionamento com a proprietária, Gertrudes Maria, conhecida como “a Parreirinha”, rapidamente conduziu o galego para maus caminhos, da bebida e do vício do jogo.
“Eram duas almas nascidas para o crime e que, por essa mesma razão, sentiam atrair-se mutuamente. Amavam-se, mas sob o domínio do sentimento carnal das feras; e se enlaçados nos braços um do outro, num momento de bestial prazer se rasgassem as faces a dentadas, decerto se perdoariam as dores sentidas, pois que seria essa a única forma como poderiam apertar mais ainda o laço que os unia.”
Galeria de Criminosos célebres em Portugal, 1897, p. 125 [ortografia actualizada]
É a partir do seu relacionamento com a Parreirinha e a frequência da taberna que Diogo Alves, com a alcunha “O Pancada”, organiza a sua quadrilha e inicia a sua carreira como ladrão de casas abastadas. Acompanhavam o galego, António Palhares (soldado), Manuel Joaquim da Silva, conhecido como o “Beiço Rachado” (também soldado), João das Pedras, o “Enterrador” e Claudino coelho, o “Pé de dança”.
A Galeria descreve o roubo e a tentativa de homicídio ocorrida numa residência na Calçada da Estrela em 1837, indicando que seria um antecedente do modus operandi dos crimes cometidos pela quadrilha de Diogo Alves: assaltos a casa de pessoas reconhecidamente abastadas.
É nesse âmbito que acontece o assalto à casa do médico Pedro Andrade. A quadrilha de Diogo Alves obteve informação sobre a fortuna do médico através do seu criado. Na noite de 26 de Setembro de 1839, na Rua das Flores nº 16, estava a família Mourão (uma mãe, duas filhas e um filho), sem ligação familiar ao médico Pedro Andrade que se encontrava ausente. Os quatro elementos da família foram assassinados pela quadrilha de Diogo Alves “por meio de pancadas na cabeça e forte pressão sobre o peito e estômago”. O crime é descoberto na madrugada seguinte pelo padeiro que ia fornecer pão à casa e encontrara as portas abertas.
Os membros da quadrilha e Diogo Alves são presos em 1840, sendo julgados nesse mesmo ano. Diogo Alves é condenado à morte e executado a 19 de Fevereiro de 1841.
Os “crimes” do Aqueduto das Águas Livres
É uma ironia que Diogo Alves seja conhecido imediatamente pelos crimes no Aqueduto das Águas Livres, embora não haja indícios que os tenha cometido, nem tão pouco que as mortes registadas no aqueduto tivessem sido homicídios. É possível que essas mortes se devessem a suicídios ou a quedas acidentais.
Na verdade, os suicídios ocorriam com alguma frequência na cidade de Lisboa durante o século XIX. Joana Cunha Leal no artigo “Suícidios capitais . Constituição de um espaço heteropico na Lisboa de oitocentos” aponta o aumento do número de suicídios no Jardim de S. Pedro de Alcântara como factor crucial para a Câmara de Lisboa ter deliberado a construção de um gradeamento em 1864 para impedir novos casos.
Reforçando esta ideia dos suicídios, a Revista Universal Lisbonense publicava em Maio de 1842 (um ano após a morte de Diogo Alves) a notícia “Milionésimo quarto suicídio nos Arcos”:
“Segunda feira ultima pelas 8 horas da manhã mais um insensato, que se despenhou do Arco Grande. Já nos cansa a mão de descrever tais crimes; e para quê? O único fim, que poderia autorizar-nos a contristar o público por semelhantes narrações, seria a esperança de conseguir que a força pública acudisse com algum género de remédio ou pelo menos esforços ou tentativas contra os efeitos da miserável loucura suicida. (…)”
Revista Universal Lisbonense, nº 34, 26 Maio 1842, p. 412 [ortografia actualizada]
Se é assim, de onde originou esta relação entre as mortes do aqueduto e Diogo Alves?
Na obra Vida e Morte de Diogo Alves de Francisco Martins Basto de 1841 encontramos uma pequena referência à actividade de Diogo Alves no Aqueduto das águas livres:
“Tal era a sociedade de Diogo Alves, que espalhada por toda a parte, trazia os ânimos sempre solicitos com seus roubos continuo, fazendo que o trânsito dos Arcos das Águas livres se tornasse impraticável, pelos muitos que ali perpetrava, arrojando de cima daquela imensa altura, os miseráveis a quem espoliava do que levavam”
Francisco Martins Basto, Vida e Morte de Diogo Alves, 1841, p. 6 [ortografia actualizada]
No artigo já citado da Galeria de Criminosos célebres, escrito 56 anos após a morte de Diogo Alves os autores advertem o leitor da dificuldade em averiguar a veracidade de tais crimes, por falta de prova, mas indicando que a autoria desses crimes estava bem assente na mente da maioria da população:
“Diz a tradição popular que o aqueduto das Aguas Livres, por sobre o maior dos arcos que o sustentam, em parte, era o local preferido pelo célebre facínora para roubar e assassinar as suas vítimas. Não é intuito meu ir de encontro a uma opinião formada e, com o decorrer de dezenas de anos, cada vez mais consolidada. Pelo contrário, é crença minha que assim tenha sucedido, porque na época em que Diogo Alves começou a sua vida de criminoso, raro era o dia em que não aparecesse no leito da ribeira de Alcântara (…) um ou mais cadáveres, com sinais evidente de haverem sido despenhados, daquela enorme altura. (…).
Prova jurídica de tais crimes não existe e é por esse facto que eles não podem ser tratados nesta Galeria.
Galeria de Criminosos célebres em Portugal, 1897, p. 125-6 [ortografia actualizada]
A Cabeça de Diogo Alves
A infame cabeça de Diogo Alves já ultrapassou fronteiras e consta como uma das curiosidades do Atlas obscura. Em Junho de 2022 a autora fez uma revisão ao artigo, corrigindo as suas afirmações originais e pondo em cheque a imagem que todos nós conhecemos da cabeça preservada num frasco.
Na já mencionada Galeria dos Criminosos Célebres, o antropólogo Dr. Francisco Ferraz de Macedo analisa detalhadamente o crânio de Diogo Alves, patente no Museu de Anatomia da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, com o número 3040 e com a seguinte legenda: “Cabeça de Diogo Alves, ladrão e assassino, morto por suspensão”.
As características morfológicas dos criminosos foram durante largos anos, alvo de várias análises e conjunturas, assumindo que era possível avaliar o grau de criminalidade apenas pela observação de sinais morfológicos na fisionomia dos criminosos. Ferraz de Macedo, já nos finais do século XIX, conclui da análise antropológica em torno do crânio de Diogo Alves:
“O crânio de Diogo Alves, comparado em geral com vários crânios pertencentes a outros indivíduos da mesma raça e povo, ainda que seja um crânio incontestavelmente anormal, apresenta uma evolução de carácter avançado em relação aos da mesma origem e raça. (…)
Não parece mais sensato, mais coerente, reputar as anomalias de pouca ou nula importância, em razão de nada servirem como indiciando e prevenção do crime, tanto mais porque ocorrem nuns criminosos e faltam noutros, sendo inverificáveis durante a vida? … etc.
Ferraz de Macedo, “Osteometria” in Galeria dos Criminosos Célebres em Portugal, 1897, p, 113
Há registos concretos das medições feitas à “cabeça óssea” de Diogo Alves e em momento algum se faz a alusão à preservação da cabeça do criminoso tal como a conhecemos dentro do frasco. Não sabemos a quem pertence, mas muito provavelmente não será do mais famoso criminoso de Lisboa.