Nos 130 anos da sua morte (1893-2023) recordamos Rosa Araújo – o Pai da Avenida da Liberdade – cuja visão de futuro daria origem a um novo eixo de crescimento da capital. O monumento escultórico que evoca a sua figura passa despercebido a passantes e passeantes.
A nova Avenida – o fim da Lisboa Romântica
Decorria o ano de 1857 quando foi apresentado o primeiro projecto para alargamento da cidade para norte, para lá do Passeio Público do Rocio. Vinte e dois anos depois, com a vontade e fundos de Rosa Araújo e o projecto do Engº Ressano Garcia, tinham início os trabalhos de demolição do velho Passeio pombalino. Simbolicamente, o Romantismo findaria com o camartelo progressista de Rosa Araújo abrindo uma nova urbe para lá dos limites da velha cidade.
A construção da Avenida era um projecto polémico porque implicava destruir o Passeio Público pombalino. Apesar de haver outros locais de convívio público exterior (Jardim da Estrela ou São Pedro de Alcântara; o Chiado mais conotado com a elite lisboeta), o velho Passeio Público tinha-se tornado popular a partir de 1834 – murado com gradeamento, com cascata, fontes, alameda arborizada e na proximidade locais de recreio como o Circo Price, Teatro Variedades e Teatro do Salitre. E a presença regular da família real, sobretudo a figura do rei-consorte Fernando II, traria o sucesso a este espaço verde, “jaula com flores” como mais tarde foi chamado.
Assim que começaram os rumores da demolição do Passeio para a abertura de um “boulevard”, levantaram-se vozes e petições contra este fim. Ramalho Ortigão atacaria violentamente a edilidade de querer incentivar o luxo pelintra, a ociosidade, espalhar os maus hábitos dos cafés.
” O projecto do boulevard do passeio do Rocio ao Campo Grande é de uma concepção tão ridiculamente pretenciosa, tão burguezmente peralvilha, tão caixeiro de loja de modas, tão cuia de retroz, tão banha de cheiro com espirito de lucia-lima, que chega a fazer nojo. (…) O boulevard é um luxo” .
Ramalho Ortigão, As Farpas, 1874
Entre 1857 e 1878 seriam vários os projectos apresentados, mais ou menos monumentalizados, mas com o mesmo objecto e forma: a necessidade de prolongar a cidade criando um eixo a partir do Rossio em direcção a São Sebastião da Pedreira (do centro para a Estrada da Circunvalação). Tendo em mente o projecto haussamaniano – uma avenida rectilínea terminando numa praça circular a partir da qual se abririam outras artérias – a diferença nos projectos apresentados oscilaria entre a largura e extensão da avenida, do perímetro da rotunda, se seria fechada com umas portas classizantes ou rematada com parque verde.
Seria Rosa Araújo a baptizar “da Liberdade” a nova avenida, em sessão camarária de 14 de Agosto de 1879.
Rosa Araújo – o Pai da Avenida (1840 – 1893)
José Gregório da Rosa Araújo nasceu na Rua dos Correeiros, filho de abastado comerciante da Baixa lisboeta. Ainda adolescente trabalharia na confeitaria de seu pai, à Rua de São Nicolau. Aqui era feito um doce muito popular entre a elite lisboeta, chamado Cocó e que era assim descrito por Tomás de Melo Breyner nas suas Memórias:
(…) pastéis de ovos envolvidos em massa folhada papirácia. Durante muitos anos os famosos e deliciosos pastéis de ovos, vulgo pastéis de cocó, foram exclusivo da confeitaria, Rosa Araújo mas hoje fazem-se em varias casas de Lisboa e numa do Porto.
Tomás de Melo Breyner,
Memórias do Professor Thomaz de Mello Breyner, 4.º conde de Mafra …, vol. I: 1869-1880
Rosa Araújo teria uma vida muito activa em vários negócios e entrando na política, foi deputado, par do reino, vereador (1872-1878) e presidente da câmara municipal de Lisboa (1878-1885). Entre outras obras (asilos municipais com escolas e creches), seria a construção da Avenida que lhe granjearia uma certa áurea de homem que sacrificou até a sua fortuna pessoal para suprir a falta de financiamento daquela obra.
A sua obra mais collosal, porém, foi a Avenida da Liberdade, esse grande logradoiro publico que Lisboa hoje possue, e que orgulhosa póde mostrar ao estrangeiro que a visita, como uma as primeiras avenidas das mais bellas cidades da Europa.
Caetano Alberto, in revista O Occidente, 1 de Fevereiro de 1893
Faleceu a 26 de Janeiro de 1893 e o cortejo fúnebre foi o primeiro que passou pela “sua” Avenida. Foram redigidos rasgados elogios à sua pessoa e à sua obra e até alguns dos seus detractores lhe reconheceram qualidades. Os epítetos elogiosos na imprensa: grande e benemérito cidadão, grandes qualidades de coração e de carácter, tão bom quanto modesto, que tanto fizera pela pátria. E que fora a política que mais o explorou e o arruinou até financeiramente. De forma arrebatada até se propunha que a Avenida da Liberdade passasse a ser Avenida Rosa Araújo.
Um benemérito só reconhecido após a sua morte, aos 53 anos.
A caricatura
Rosa Araújo era apelidado de “Cócó” – referência aos famosos pastéis de ovo fabricados na Confeitaria da família – servindo essa alcunha para titular algumas das caricaturas bordalianas. E outros epítetos jocosos eram ainda usados na imprensa da época como “rotundo cócó” ou “o barão Haussman alfacinha”.
Aquando do início das demolições do Passeio Público, na revista O António Maria, Rafael Bordalo Pinheiro legendava assim uma caricatura de um Rosa Araújo de camartelo na mão:
No dia de S. Bartholomeu, em 24 de agosto, costuma dizer-se que anda o cócó às soltas. D’esta vez foi ao velho Salitre e deitou-o a terra. Permitta Deus que a cidade em vez da avenida, passadas as eleições, não fique unicamente com mais um tapume.
in O António Maria, nº 12, pág. 96, 28 de Agosto de 1879
A figura obesa de Rosa Araújo tornara-se assim um alvo favorito da caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro.
1879 – 1886 – 2023
As demolições começaram no dia 24 de Agosto de 1879 e a inauguração da nova Avenida seria feita ao mesmo tempo que o Monumento aos Restauradores na nova praça, a 28 de Abril de 1886. Ainda nesse ano, a Avenida da Liberdade serviria para a passagem do cortejo do casamento do príncipe D. Carlos e da princesa D. Amélia de Orleães.
– Todavia Lisboa faz diferença – afirmou Ega, muito sério – Oh faz muita diferença! Hás-de ver a Avenida… (…)
– Ora aí tens tu essa Avenida! Hem?… (…)
Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público, pacato e frondoso – um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço cor de açucar na vibração fina da luz de Inverno (…) E ao fundo a colina verde, salpicada de árvores, os terrenos do Vale de Pereiro, punham um brusco remate campestre àquele curto rompante de luxo barato – que partira para transformar a velha cidade , e estacara logo, com o fôlego curto, entre montões de cascalho.
Eça de Queiroz, Os Maias, cap. XVIII, 1888
A Avenida iria cumprir uma função social mais alargada que o Passeio Público nunca tinha alcançado. Em 1898 organizou-se a Feira Franca integrada nas comemorações do IV Centenário do Descobrimento da Índia, a Avenida seria o cenário dos cortejos da Batalha de Flores e de corso carnavalesco, desfiles que antecederam a chegada das Marchas Populares. Teve vários coretos, móveis e fixos até 1935, quando o último foi transferido para o Jardim da Estrela e ali permanece até à actualidade.
Para além da música, a Avenida recebeu salas de teatro e cinema e durante os anos 40 a animação seria dada pelos vários cafés e hotéis entretanto abertos. Durante a 2ª Guerra Mundial, esta Avenida seria ponto de encontro de refugiados e espiões.
A partir de 1890, a Avenida passaria a protagonista de um dos maiores investimentos capitalistas de habitação e lucro. Era um cenário que se perspectivava desde o início da obra, em que as expropriações de terrenos permitiriam à câmara vender por um preço mais elevado, conseguindo assim algum financiamento.
A construção desta Avenida havia despertado em companhias edificadoras e instituições bancárias, entre capitalistas nacionais e estrangeiros, uma antecipação de bons e lucrativos negócios. Isto é, construção de prédios de arrendamento que iriam não só urbanizar esta nova cidade que se estendia para Norte como permitir que mais famílias pudessem viver nesta nova centralidade. Também os capitalistas investidores teriam aqui os seus palacetes revivalistas e modernistas desenhados por arquitectos então de renome como Norte Júnior, Bigaglia, Henri Lusseau e mais tarde até Cassiano Branco e Pardal Monteiro.
A Avenida até à actualidade continua a cumprir esse desiderato de festa popular, desfile militar e manifestação política e sindical, de passeio, de investimento e especulação.
E Rosa Araújo? Tardiamente ser-lhe-ia prestada homenagem com a inauguração de um busto comemorativo que ficaria escondida numa esquina entre a Rua Mouzinho da Silveira e a Rua então baptizada com o seu nome. A história rocambolesca do busto transformado em monumento com uma Lisboa agradecida será contada na próxima visita guiada.