As curiosas relações entre os abanicos e neve (leques e gelados) e a presença espanhola em Lisboa.Um texto fresquinho para ajudar a suportar o calor que se adivinha durante as próximas semanas.
Do abano ao avano lequeo
Um dos acessórios cuja origem perde-se nos confins da humanidade e que serve para refrescar, estranhamente é pouco visto e usado em Portugal. Sobretudo quando se descobre que foi graças aos portugueses e a uma rainha de Portugal que a Europa passou a refrescar-se de forma elegante e sofisticada. Falamos do leque que facilmente se associa a Espanha com a salerosa palavra “abanico“.
O leque plissado ou dobrável, composto por uma folha aplicada sobre varetas e que pode ser fechado e aberto com um gesto rápido de mão, chegaria à Europa via Portugal, trazido da China.
Antes da chegada do leque de origem asiática, já existiam outros instrumentos para agitar o ar. Da Grécia ao Egipto, da China ao Médio-Oriente e pela Europa, num formato rígido, com uma haste e écran redondo, quadrado, com plumas ou material vegetal. Era quase sempre usado por figuras ilustres de alto estatuto social, político e até religioso, de imperadores a cardeais. Lembramos os flabelos que acompanhavam o cardeal-patriarca de Lisboa em vários rituais e que hoje podem ser vistos no Tesouro da Sé.
Se falarmos em “abano“, remete-nos logo para o “abano de palha ou abanador” que serve para atiçar o carvão que assa a sardinha, tão portuguesa. Na verdade, este formato de haste com écran redondo é muito semelhante ao pien mien, abano chinês, de material mais nobre e de uso feminino.
Provavelmente os primeiros exemplares de “avanos lequeos” teriam chegado com Afonso de Albuquerque ou Jorge Alvares mas a certeza documentada está numa encomenda de 1564 que a rainha D. Catarina de Áustria fará de “178 avanos lequeos” para serem oferecidos às suas familiares nas cortes europeias. E assim nasceu uma moda, o leque tornar-se-ia uma marca de estatuto social e de poder (no feminino), com uma linguagem própria nascida nas cortes europeias.
A partir do século XVIII, a França, Inglaterra, Espanha criam grandes manufacturas de leques para consumo europeu. Portugal manteve-se como importador/exportador de leques fabricados na China, Macau e Japão, não tendo criado uma indústria própria, limitando o uso do leque a uma elite com poder económico de aquisição. Na actualidade, a China e Espanha mantêm-se como os maiores fabricantes de leques.
O fascínio que esta nova tipologia de “abano” causou, seria responsável pela importação de milhares de peças, ao mesmo nível que a porcelana, chá e especiarias. Um facto curioso: a palavra “leque” é de origem chinesa e conjectura-se que terão sido os portugueses a dar este nome. As Ilhas Léquias, então território chinês, era um dos pontos de expedição destes abanos que abriam e fechavam, dando assim nome ao “abano”, então descrito como “lequeo” (liu-ch’iu) e tendo a particularidade de assim permanecer até aos nossos dias.
Curiosidade: abano vem do latin “vannus” = ventar, abanar = abanico. Outras palavras com a mesma raiz e significado: ventarola (flabelo), éventail (fr.), ventaglio (it.). Em chinês a designação geral é shan e em japonês sensu.
Na China e Japão, o leque desdobrável era objecto de uso quotidiano por homens e mulheres de várias classes sociais. Usado à cintura, guardado em delicadas bolsas de seda, feitos de materiais exóticos, de madrepérola a bambu, com folha de seda pintada.
Para saber mais sobre a origem dos abanos-leques, o Museu do Oriente tem patente uma exposição temporária sobre a origem dos leques asiáticos cativaram a atenção e o desejo dos europeus. A não perder, “Na senda dos leques orientais”.
Do gelo à neve
Se os leques não se democratizaram em Portugal, os gelados – neve ou sorvete – seriam o formato mais popular para refrescar o corpo num dia de calor. Ou pelo menos para matar a sede de forma mais saborosa.
Tirso de Molina, famoso dramaturgo espanhol, na comédia El burlador de Sevilla (1630?), faz uma referência em concreto à “neve” trazida da Serra da Estrela até à capital:
REY ¿Es buena tierra Lisboa?
in Cervantes Virtual
D. GONZALO La mayor ciudad de España;
(…)
Es Lisboa una otava maravilla.
(…)
pan, aceite, vino y leña,
frutas de infinita suerte,
nieve de Sierra de Estrella,
que por las calles a gritos,
puesta sobre las cabezas,
la venden.
Esta “neve” a que o autor se refere, era na verdade gelo trazido da Serra da Estrela até Lisboa para ser consumido como sorvete ou gelado à mesa d’el rei. A neve era aromatizada com sumos de frutas e açúcar, em substituição do mel, popularizando-se em Lisboa nos séculos seguintes.
Em 1619 o Senado da Câmara de Lisboa assina contrato com o neveiro Paulo Domingues para fornecer, diariamente, Lisboa com 96 arrobas de neve (cerca de 1440 Kg). O contrato está directamente ligado à recolha, armazenamento e transporte da neve na Real Fábrica da Neve do Coentral, situada no Cabeço do Pereiro (serra da Lousã). Este fornecimento tinha como destino o Paço onde esteve, durante 3 meses, o rei Filipe II de Portugal / Filipe III de Espanha. Possivelmente uma exigência do próprio rei ou da organização lisboeta da estada real, era que não faltasse neve na mesa real.
O certo é que rapidamente na capital portuguesa, este negócio e comércio da “neve” terá grande sucesso e subsistindo ainda em finais do século XIX o Café do Gelo (Rossio) ou Casa da Neve (actual Martinho da Arcada). O século XX iria ainda democratizar mais o acesso ao gelado com a venda ambulante e que ainda hoje é habitual encontrar na Baixa a par de gelatarias de origem italiana.
A 25 de Julho celebra-se o dia de Santiago Apóstolo. Festejado na Galiza, Comunidade de Madrid, Navarra e País Basco e cujos caminhos de peregrinação voltam a estar na moda. E em Lisboa inicia-se o Caminho Central. E este é o mote para uma nova edição da visita guiada Lisboa à Espanhola!